segunda-feira, 27 de maio de 2013

Ensino e pesquisa ou Recanto de Memórias

Nas últimas semanas, depois de analisar com calma as biografia de avós dos meus estudantes do 6o ano, estou construindo com eles, em sala de aula, os textos sínteses que reúnem os dados e as narrativas de cada turma. O primeiro passo é apresentar para eles os dados, que divido em 8 categorias: sexo, origem, migração, época do nascimento, trabalho na infância, estudo, ocupação e opinião sobre o mundo de hoje. Há uma discussão sobre aquelas informações para fomentar a reflexão. É importante ressaltar para eles que essa é uma história produzida por eles: eles não estão ali só aprendendo, estão ensinando o que aprenderam com os familiares. Eles são convidados a refletir sobre uma informação que eles mesmos produziram e eu apenas recortei.
Através de um debate com cada turma, analisando as possibilidades de significados dos dados, vou construindo o texto no quadro. Durante a narrativa, eu vou inserindo citações deles mesmos, escolhidas por mim previamente na correção dos trabalhos. Elas tanto inserem o discurso dos crianças, essas memórias reverberadas de seus avós, quanto formam uma espécie de colcha de retalhos capaz de dar a ler micro e macro histórias. A produção do texto se transforma na possibilidade de pensar as vivências e memórias de seus antepassados, além das relações com as vivências e memórias dos educandos. Uma história muito mais familiar é construída na sala de aula.
Como em toda boa aula, isso leva à construção de um texto diferente para cada turma. As análises não só abarcam o esforço de pesquisa dos educandos como atingem a sensibilidade deles, pois mostra que aquelas histórias de vida, de pessoas simples e vividas, são capazes de dar conta da história deles mesmos, da história da localidade (no caso, o Recanto das Emas), de Brasília e mesmo do Brasil.
Umas das boas coisas que aprendi na minha formação como professor de história / historiador é que a história é um discurso, uma forma de atribuir sentido ao mundo. Permitir que os alunos percebam isso e construam seus próprios sentidos sobre o mundo, sobre suas famílias, suas localidades é um desafio. Se queremos isso deles, temos de escutar e orientar essa prática. Ninguém aprende com o erro dos outros, mas ninguém aprende tudo sozinho.
Vale lembrar que esse trabalho é a base da minha (pretensa) pesquisa da tese de doutorado. Ensinar pesquisando e pesquisando para aprender.. ensinar.. enfim, vocês entenderam.. ou não?
O resultado do esforço conjunto de todos nós segue abaixo:

6o ano A

Nas biografias dos avôs e das avós escritas pelos estudantes do 6o ano A do CEF 308 do Recanto das Emas, nós pudemos observar uma maioria de histórias de vida de mulheres. Isso pode ser explicado pelo maior contato com as avós, pois muitas vezes as mulheres passam mais tempo com a família. Para os filhos e netos é mais fácil conhecer as histórias de vida de suas mães e avós, já que os homens passam, em geral, mais tempo fora de casa, isso quando eles se envolvem com os filhos de alguma forma.
A grande maioria desses avós veio de estados do Nordeste como Piauí (6), Bahia (4), Maranhão (3) e Ceará (2), ou ainda, de áreas interioranas de estados próximo ao planalto central como Minas Gerais (3).  Como nos mostra a aluna Elayne, quando nos conta de sua avó: "Eu nasci em Serrolândia, Bahia, e me mudei de lá para Goiás, depois para o Recanto das Emas, porque perdi os meus pais". Assim sendo, nós percebemos que haviam muitas dificuldades nessas regiões, onde haviam poucas oportunidades de trabalho e estudo.
Essa migração dos nordestinos começou muito antes da construção de Brasília e continua até os dias de hoje. A maioria das biografias nos mostram que esses avós (12) mudaram de suas terras natais em busca de uma vida mais justa. De acordo com a estudante Katherine: "Também pensando no futuro de suas filhas, resolveu mudar-se para Brasília, pois ela encontrou melhores condições de vida. Já a aluna Gislane acrescenta que: "Minha avó nasceu no Ceará. Ela mudou de lá, porque lá não tinha emprego". Essas mudanças, muitas vezes, eram feitas por toda a família, como no caso da avó de Guilherme Vitor: : "Ela nasceu em Minas Gerais, mudou de lá porque todos os irmãos dela vieram para cá". Mesmo assim, alguns desses avós (7) vivem até hoje na mesma localidade, como nos mostra a estudante Michele: "A minha avó nasceu em Redenção, Piauí, se criou lá e não mudou de cidade". Assim, nós percebemos que os caminhos da vida dos nossos antepassados também é um pouco do nosso caminho.
Na época em que muitos desses avós nasceram, a vida tinha várias dificuldades. Muitos desses avôs e avós (10) nasceram na década de 50, o que nos mostra que ainda eram crianças na época da construção de Brasília. Desse modo, entendemos que a maior parte deles acompanhou os pais e a família na busca por melhores condições de vida no centro-sul. Segundo a estudante Thatyane, por exemplo: "Minha avó nasceu em 1955 no hospital, a vida antigamente era difícil".
Essa vida difícil podia ser percebida na necessidade deles trabalharem desde a infância para ajudarem seus familiares. A grande maioria (14) teve de trabalhar durante a infância para garantir o sustento da casa, como nos conta a aluna Jully: "A infância do meu avô era difícil, porque ele e as outras crianças tinham que trabalhar na roça ajudando seus pais". Ser criança naquela época era já ter que lidar com as responsabilidades de um adulto.
Além de terem de trabalhar, esses avôs e avós tinham dificuldades para frequentar a escola. Mesmo que 15 dos avós tenham dito que frequentaram a escola, apenas 2 deles disseram que concluíram o estudo. A maior parte fez as séries iniciais para aprender o básico como ler e escrever, as contas de somar e subtrair, antes de abandonar os estudos. Segundo a estudante Nicolly: "Naquela época era muito difícil ir à escola, mas o pouco que eu consegui foi estudar até a 3a série". A mesma ideia aparece no depoimento colhido pela aluna Gabriela: "Estudei até a 4a série, eu frequentei a escola em busca de um futuro melhor, mas isto não foi possível". A estudante Isadora acrescenta ainda sobre sua avó: "Frequentou a escola com 6 anos e parou de estudar com 10 anos. Ela estudou porque a mãe dela aconselhou a estudar para o desenvolvimento". Sendo assim, temos de acrescentar os 4 avós que sequer puderam iniciar os estudos, como cita a aluna Jenniffem: " Minha avó não foi à escola, porque os pais dela não tinham condição". Vemos que era outra a importância e a possibilidades de estudo naquela época.
Com pouco estudo ou nenhum estudo, muitos desses avós tiveram poucas opções de trabalho na vida adulta. A maior parte deles (9) continuou envolvida com a agricultura, serviço que já praticavam desde a infância ajudando suas famílias. Outra parte significativa desses avós (5) trabalhou  com serviços domésticos em casa de família. Segundo o estudante Maikon, por exemplo: " Era trabalhador rural, plantava arroz, açúcar e mandioca. Colhia e depois vendia". A mesma ideia é apresentada pela estudante Maria Eduarda: "Trabalhou na roça, no engenho, fazendo farinha, plantando mandioca, feijão, cana". Além do trabalho agrícola, qualquer serviço apresentava muita dificuldade, como nos mostra a estudante Thatyane: "Ajudou seu pai a vender coisas, ganharam dinheiro, mas não foi o suficiente para pagar as contas e botar o de comer na mesa". Assim sendo, aprenderam a sobreviver com o que tinham e a encontrar a beleza onde podiam, como nos narra o aluno Guilherme Ítalo sobre seu avô: "Trabalhou de ajudante nas construções, gostou de ver como ficavam as construções".
Com essas vidas tão cheias de acontecimentos, que podemos usar para construir um conhecimento sobre o passado e suas vivências, os avôs e avós ficaram divididos entre os que consideram que o mundo é melhor nos dias de hoje (6) e os que preferiam o mundo antigamente (7). Alguns, como a avó da estudante Giselle, defendem que o tempo passado era melhor: "Antigamente ela achava melhor, porque não existia violência em lugar algum". Outros, como o avô da estudante Jully, preferem o tempo atual: "Meu avô disse que hoje é melhor que no tempo dele, porque as coisas evoluíram". Portanto, podemos perceber que as ideias de menor violência, de maior contato entre as pessoas e da força da juventude são critérios de quem defende o tempo passado. Enquanto que a tecnologia e modernidade estão nos relatos dos que preferem a atualidade.
Para concluir, podemos ver que as histórias de vida desses homens e mulheres, pesquisadas e escritas por seus netos e netas, são capazes de desenvolver o conhecimento não só sobre as famílias, mas também sobre a cidade Recanto das Emas, a capital Brasília e até mesmo sobre a história do Brasil. Existem aqui exemplos, análises e pensamentos que servem para todos nós conhecermos nossa própria história, construirmos essa história como construímos esse texto.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Currículo em movimento: uma questão de perspectiva



Salve salve pessoas.. eu não sou muito de desistir das coisas, mas hoje eu desisti de participar do processo de discussão e "reformulação" do currículo promovido pela secretaria de educação do DF, no meu caso, na Coordenação de Ensino do Recanto das Emas. Desisti por não concordar, ou melhor, por não ver possibilidade de discordância. Não há um processo de discussão do currículo. Há apenas a burocracia para legitimar um processo que é tido com necessário, mas cujos agentes não estão interessados.
Tentarei ser mais claro. Não me parece que a maioria dos professores esteja interessada na modificação do currículo. Currículo aqui entendido quase que totalmente como conteúdos.
Se você tem pouca leitura sobre currículo, te indico o Tomaz Tadeu Silva pra você começar... mas saiba desde já que currículo é muito mais que uma seleção de conteúdos. Minha e meu querid@, currículo é poder.
A secretaria de educação entende que são necessários 64 professores (4 por área, metade de cada turno) para conferir a legitimidade dessa reformulação. Haviam 15 professores no encontro. Todos recebendo fichas e um modelo impresso dos conteúdos que deveriam ou não ser suprimidos, acrescentados ou alterados.
Nada de debates conceituais. Nada sobre estratégias de ensino. Nada sobre legislação de ensino. Nada sobre cultura escolar. Só marque C para os certos e E para os errados. Para no fim, nossos belos nomes conferirem uma legitimidade vazia para mais um documento artificial que tenta enquadrar a realidade. Não tô nessa para aceitar pré-histórias, origens e progressos luminosos.
Não quis ser herói. Só não tava com saco pra isso. Tive um dia difícil, onde eu conversei com vários seres humanos sobre os rumos de suas vidas. Onde eu dei minhas aulas, transferi estudantes de turma, me decepcionei com alguns fujões, entre outras coisas.
Também não estou colocando a culpa nos agentes.. aprendi com um grande amigo há muito tempo a sair do mundo da culpa.. nunca ajuda em nada. Sei que não é o processo que deveria (ou que se proporia) a ser. Para mim, está muito mais vinculado ao mesmo processo disciplinador, homogeneizante e acrítico que vem desde os princípios da escolarização. Mais do mesmo.. sempre mais do mesmo ensino bancário. Simples assim.