sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Narradores de Javé de Eliane Caffé


Salve salve pessoas...
Esse ano com a sala de vídeo já pronta e novas cadeiras (mais confortáveis e duráveis do que as do ano passado) pude dar início ao projeto História e Cinema lá na escola dentro do programado. A pia que havia foi retirada e a sala já está sendo útil desde o ano passado. O primeiro filme que apresento aos estudantes foi Narradores de Javé, um filme de 2003 da diretora Eliane Caffé.
O filme narra a "odisseia" da população da pequena vila de Javé que será engolida pelas águas de uma barragem. Na esperança de salvá-la do avanço das águas, a população resolve relatar a história das origens da comunidade para constituir um documento capaz de embasar a defesa desse patrimônio cultural.
Tudo isso, nós sabemos através de Zaqueu, personagem de Nélson Xavier, que está narrando o acontecido a outras pessoas em um bar.
Incapaz de documentar a própria história, a população se vê obrigada a repatriar um antigo pária, um poeta lançado ao ostracismo por ter denegrido no passado todo o povo da comunidade javense, Antônio Biá, vivido magistralmente por José Dumont. Antônio Biá recebe a incumbência de ouvir a todos e produzir a narrativa final capaz de salvar Javé e ele mesmo.
Demora pouco para que o Homero nordestino, no entanto, esbarre nas histórias construídas por cada um. Cada qual dos habitantes tem seus próprios interesses a apresentar, desejando sempre "puxar a sardinha pro seu lado", como se diz por aí. Todos tem alguma história, alguma prova ou desejo de possuir um ou outro. O próprio Biá faz daquela história o palco de sua prosa debochada e inquieta, perturbando a todos ao mesmo tempo que relembrando-os da necessidade que tinham dele. Como já fizera antes e anuncia, ele mostra que há fogo, onde todos viam apenas fumaça.
Várias das falas de Antônio Biá e seus vizinhos podem ser exploradas em sala de aula, tais como:
-"Uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito. O acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido".
- "Gente, escritura é assim: um homem curvo vira carcunda; gente do olho torto, eu digo que é zaroio; por exemplo, se o sujeito é manco assim, então, na história, eu digo que ele não tem uma perna. É assim, é das regras da escritura".
- "Se a senhora não quiser, eu não dou grafias na sua odisseia ou escrevo o que me der na cachola sem ponto e vírgula"!
Tudo isso, somado às narrativas mais que pessoais da comunidade, nos permitem ver os inúmeros conflitos daquela gente e o reflexo em suas histórias sempre atuais do passado. Haveria alguma verdade além das versões? O filme escancara a dimensão narrativa da história, um problema batido para os acadêmicos, mas muito negligenciado em sala de aula. A epopeia formadora das nações e Estados modernos é tida com única e inevitável forma de se estudar história. Eu deixei de crer no lindo progresso da civilização ocidental muito antes de aprender que o progresso foi uma ideia construída "positivistamente" no século XIX.
Além de denunciar ilusões historiográficas, o filme serve para dar voz a uma cultura popular muito mais próxima de nós do que se costuma aceitar. As duas turmas de 8o ano que assistiram ao filme hoje adoraram, se esborracharam de rir e reconheceram muitas de suas vivências ou de seus familiares nas cenas do Brasil que passavam na tela.
Obviamente, o filme que possui cerca de 100 minutos tomaria duas aulas para ser passado completamente. Eu prefiro fazer um recorte que vai do momento que Antônio Biá apresenta o livro onde escreverá a história (minuto 18) até o fim da narrativa de Firmino, o ator Gero Camilo, na casa de Deodora, a atriz Luci Pereira (minuto 45). Isso permite aos educandos assistirem três narrativas: a do senhor Vicentino, o ator Nélson Dantas, (engrandecendo Indalécio); a da senhora Deodora (engrandecendo Mariardina); e a do próprio Firmino (se colocando no papel de Indalécio, ao mesmo tempo que denigre o próprio e Mariardina). Também dá tempo para o deslocamento para a sala de vídeo e a discussão sobre o que foi assistido sem correria.
A provocação começa com qual é a verdadeira história? Existe uma história verdadeira?.. e por aí vai...
Na semana que vem, no turno contrário, passarei o filme completo para os estudantes que se interessarem.
Por uma questão de mudanças do horário esse ano, eu tive a oportunidade de passar todo o filme para uma das turmas de 8o ano. Foi sensacional. O acréscimo das narrativas dos gêmeos (que escancaram o caráter personalista das memórias javélicas na disputa por uma herança) e do velho negro cujo discurso passa por um tradutor (transformando Indalécio, em Indaleo, líder dos negros fugidos que encontram Oxum, orixá da água para guiá-los ao invés de Mariardina) ampliaram ainda mais as possibilidades do filme. A filmagem dos discursos desesperados dos moradores pelos engenheiros que construirão a represa também são de uma eloquência tremenda.

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