segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Plano de aula para 8o ano: Terra e propriedade, conflitos e desigualdade



Salva salve pessoas, mais um ano escolar que começa. As aulas voltaram dia 14/2 e eu cheguei a participar de metade da semana pedagógica na nova escola, o CEF 102 Norte de Brasília. Estou bastante impressionado com a escola e acredito que poderei falar sobre isso em outra postagem. Após algumas aulas de apresentação para as turmas novas, entrando naquele clima de início de ano letivo (assim como iniciando bons projetos em conjunto com a equipe para receber melhor as alunas e alunos), já me sinto respaldado para elaborar o meu planejamento da melhor forma possível.

Esse ano não darei aula para o 6o. Sim. Eu sei 😢😭😭😭. Você que me conhece deve estar em choque como eu. Para quem não conhece, bom, eu sou um apaixonado pelo 6o ano. Trabalhei com 6os em todos os anos em que estive na sala de aula praticamente (só não no meu primeiro ano em 2009). Mas enfim, a vida tem dessas coisas. Precisava trabalhar pela manhã por conta da vida familiar, cá estou com 4 turmas de 8o, 4 turmas de 9o e 2 turmas que trabalho um PD sobre leitura.  

Para começar o ano é necessário um planejamento das suas aulas. Mesmo que muita gente possa se gabar de dar uma aula excelente sem tê-la planejado (o que acontece bastante), o planejamento é parte da qualificação do processo de ensino-aprendizagem. Você pode ler excelentes manuais sobre como ensinar história, ter ótimas aulas de prática de ensino da história, mas só vai aprender a fazer planos de aulas depois que tiver uma prática para embasá-lo.
Em um mundo ideal onde todos os professores tem um planejamento de suas aulas, um trabalho interdisciplinar é mais palpável. Podemos ir além de pacotes de provas e temas transversais. Um planejamento de qualidade e integrado ao projeto político pedagógico da escola é capaz de transformar as experiências, potencializar e envolver mais e mais todos os atores envolvidos. É preciso tomar cuidado com a noção de que depois de ter a prática, não se precisa mais planejar. É justamente o contrário, quanto mais prática, mais fácil e melhor o planejar.
Tudo isso se torna ainda mais importante com o atual contexto da pandemia do Corona Vírus. O planejamento associado a um bom mapeamento diagnóstico e a um diálogo atento podem diminuir as inúmeras dificuldades colecionadas pelo caminho. Infelizmente, por ter mudado de escola, esse esforço deve ser redobrado já que estou no princípio do meu envolvimento com essa comunidade escolar. Mas tenho certeza em afirmar que sem planejamento, paciência e cooperação seguiremos a ver dificuldades se avolumarem.
Uma coisa deve ficar clara: não é mais possível retornar ao que havia antes (nunca é possível na verdade). Esse ensino caduco gestado ao longo de 200 anos de disciplinarização de mentes e corpos dóceis não cabe. Precisamos todos rejuvenescer. Ainda com Belchior, essa escola é uma roupa que não nos serve mais. Para mim é muito estranho essa volúpia ansiosa por expulsar a tecnologia, as plataformas e todo o aparato que fomos obrigados a assimilar. Certamente, não é a tecnologia em si o problema. Precisamos freirianamente valorizar e potencializar a autonomia de quem aprende.

A proposta que apresento a seguir é de aulas para o 8o ano do ensino fundamental. O livro didático com que trabalharei, selecionado pela escola para os próximos 4 anos é Araribá Mais: História de Ana Claudia Fernandes. Também trabalho muito com filmes, produção de textos e leituras.
O eixo-temático proposto para o 8o ano é Terra e Propriedade: Conflitos e Desigualdades. Essa escolha é tributária do meu trabalho ao longo dos anos com o material didático produzido pela professora Conceição Cabrini e outras autoras (História Temática e depois Projeto Velear). A última vez que lecionei para o 8o ano foi em 2014. Somado a isso, ia trabalhar com alunos que praticamente na totalidade haviam sido meus alunos no 6o ano. Por isso, há aqui uma escolha mais ampla, que se articula a outros planejamentos que já fiz, tanto para o 7o ano, ano passado, quanto uma parte introdutória muito próxima do que realizo com o 6o ano. Vale destacar, que a última vez que minhas 4 turmas tiveram um ano inteiro regular em sala presencialmente, estavam no 5o ano. Por isso, acredito ser importante uma atenção a certas habilidades e conceitos que costumam ser trabalhados em outras etapas.
Nesse sentido, no 1o bimestre, darei continuidade ao estudo das história de vida das estudantes. O trabalho da avó terá a centralidade costumeira para refletirmos sobre a história familiar e local. Uma vez mais, pretendo investigar, ouvir e conhecer as memórias e histórias sobre a minha escola, agora o CEF 102 norte. Dar a ver e a ler a história da escola é o fio da meada que entrelaça nosso bordado (EF06HI01 e 02).
Proponho, dessa forma, uma revisão de certos conteúdos para ir ao encontro de algumas habilidade que me parecem importantes para pensar o mundo moderno em concordância com os eixos temáticos propostos. Embora eu não acredite no caráter vinculante dos conteúdos propostos pelo currículo, sabendo que os eixos temáticos nos permitem uma liberdade muito maior de análise, entendo que o contexto pede um diálogo com aquilo que foi vislumbrado, mesmo das formas mais distantes, no ano passado. Me interessa, em especial, um entendimento adequado do que representa esse tal mundo moderno e a modernidade (EF07HI01). Aproveitando o material das vídeo-aulas produzidas no ano passado, acredito que é possível tornar o processo de revisão e debate mais dinâmico, onde as diferentes competências e habilidades objetivadas sejam articuladas também em rede, Ou seja, as tensões e resistências, os conflitos e as desigualdades que marcam a ascensão de um mundo cada vez mais globalizado, governado pelo capital e orientado para o futuro precisam ser (re)apresentadas (EF07HI02 a 16).
No 2o bimestre
, passaremos aos conceitos de posse, propriedade e à discussão da questão do direito à terra na história do Brasil. A lei de terras de 1850 (EF08HI15), a escravidão (EF08HI19 e 20), o movimento dos sem terra e outros elementos serão problematizados. Depois será a vez de explorar outras geografias e períodos como a reforma agrária mexicana (EF08HI13), a propriedade da terra na África subsaariana pré-colonial (EF07HI03) e na Roma Antiga (EF06HI11 e 14). Integrado a isso, trabalho a leitura do livro Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, cuja leitura é iniciada em sala de maneira expositiva. Também já disponho de um variado material para tratar dessa atividade de leitura, o que facilita e potencializa o interesse de educandas e educandos pela obra.
Pretendo continuar trabalhando com alguns filme como: Narradores de Javé de Eliane Caffé; Acercadacana de Felipe Calheiros; Vidas Secas de Nélson Pereira dos Santo, Ilha das Flores de Jorge Furtado;  Cabra Marcado pra Morrer de Eduardo Coutinho. Esses filmes servem não só para ilustrar alguns elementos da discussão, como expandir as fronteiras desses debates através da sensibilização dos olhares e do transbordamentos das sensações. Destaco aqui a inspiração da proposta de Marcos A. Silva e Selva G. Fonseca no capítulo intitulado Imaginário e Representações no Ensino de História do livro Ensinar História no Século XXI: Em Busca do Tempo Perdido). 
O trabalho bimestral é a produção de um texto sobre a moradia dos estudantes. Cada um deles, orientados por um roteiro, deve buscar historicizar sua propriedade (ou posse), (EF08HI06). Há uma atenção à escrita e produção do texto, mas o objetivo principal é conhecer ainda mais o universo das alunas e alunos, como interpretam e representam suas realidades, trazendo suas vivências para o centro dessa discussão. Narradores de suas Javés.
No 3o bimestre, a leitura do livro A Utopia de Thomas More é utilizada para oferecer ideias para pensar o mundo anterior à Revolução Francesa (EF08HI02 e 03), bem como as contradições que impeliam as mudanças e crises dessa tal modernidade. A perfeição da ilha de Utopia é o contraponto da Inglaterra do século XVIII, mas também da França pré-revolucionária e até mesmo do Brasil do século XIX (EF08HI05), XX ou XXI. Nutro profunda admiração por essa obra tão simples e tão complexa ao mesmo tempo. Um texto que reverbera tantos elementos essenciais para pensarmos a as possibilidades da modernidade e as desestruturações que isso representa. Isso articula-se aos debates sobre a importância central não só da Revolução Francesa (EF08HI04), mas da industrialização e do iluminismo (EF08HI01) para a aceleração ininterrupta que se constitui. Não apenas um mundo de forças capitalistas deterministas que se estruturam, mas também de experiências de luta e táticas de resistência nos fazeres cotidianos de trabalhadores, expropriados, escravizados e/ou marginalizados (me inspiro em autores dissonantes como E. P. Thompson e Michel de Certeau).
Esse debate será articulado às comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil (e 100 anos da Semana de Arte Moderna de 22), (EF08HI12 e 13). Iremos trabalhar com as dimensões dessa pretensa independência. Não só os contornos para a formação da nacionalidade brasileira e de nosso Estado nacional, mas também os conflitos e desigualdades reafirmados e reforçados (EF08HI15 e 16). A relação com a manutenção da sociedade escravista, a perpetuação da violência, os tradicionais acordos e conchavos para silenciar os conflitos e lutas populares. 
Dessa forma, a análise do projeto de Brasil que vai sendo articulado ao longo do século XIX em contraposições aos múltiplos Brasis que vão sendo "capados e recapados", como dito por Capistrano de Abreu sobre o povo brasileiro. E soma-se a essa análise o trabalho bimestral em que as estudantes devem exercitar a leitura de imagens célebres retratando a Independência do Brasil de François-René Moreaux e Independência ou Morte de Pedro Américo. A atividade a ser realizada é fortemente inspiradas nas tarefas da 2a fase da Olimpíada Nacional de História do Brasil (ONHB). Basicamente, consiste a associar um grupo de afirmações aos respectivos fragmentos selecionados da imagem e marcados por números.
Há ainda outra opção avaliativa, que educandas e educando podem realizar em grupos de 2 ou 3, onde terão de analisar, debater e explanar através de cartazes sobre dois documentos fundamentais da Semana de Arte Moderna de 22: Manifesto antropófago e Manifesto da poesia pau-brasil, ambos de Oswald de Andrade. A ideia é refletir sobre esses documentos enquanto retomada crítica da própria noção de independência.
No 4o bimestre, o conteúdo mais destacado no diálogo com os eixos temáticos propostos são o colonialismo e o imperialismo ao longo do século XIX (EF08HI23 a 27). A globalização dos conflitos sob a bandeira das narrativas cientificistas e racionalistas do progresso semeando a desigualdade numa escala nunca antes conhecida. As resistências dos povos africanos, americanos e asiáticos ante as invasões e desmandos europeus e norte-americanos. Valorizo aqui as formas de luta e resistência a esse processo, a incoerência entre a noção de uma belle epóque e uma corrida sanguinária e consumista das nações em formação.
O livro a ser trabalhado nesse bimestre é justamente um esforço político e consciente de que as alunas e alunos entrem em contato com uma autora negra e africana, que no seu próprio fazer golpeia e rompe com os silenciamentos perpetrados pelos imperialistas. Para Educar Crianças Feministas: Um Manifesto de Chimamanda N. Adichie foi selecionado para ser apreciado em conjunto com a palestra sobre O Perigo de Uma Única História da mesma autora. A ideia aqui é reverberar mais e mais os gritos de resistência e não só as vozes opressoras.
Por fim, o trabalho para encerramento do ano será o de pesquisar o processo de invasão, domínio, exploração, resistência e independência de países latino-americanos, africanos ou asiáticos. A ideia aqui é mais uma vez ir na contramão dessa narrativa valorativa de um pretenso progresso iluminado da humanidade. Cada estudante terá liberdade e orientação para fazer a própria escolha, sendo incentivado a pensar as tensões do processo de formação e emancipação da nacionalidade escolhida.

Como podem ver, há muita boa vontade e ideias a serem experimentadas. Acho que esse vai ser um ano de muita luta, mas até por isso, um ano de muitas transformações. Vivamos.